O Lar das Crianças Peculiares

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Nota: 5.5

A adaptação de livros de aventuras juvenis vem se consolidando como uma maneira segura para os estúdios de cinema faturarem altas cifras em bilheteria. Para o fim de 2016, a 20th Century Fox apostou em “O Orfanato da Senhora Peregrine para Crianças Peculiares”, best seller de Ransom Riggs, com milhões de cópias vendidas em 40 idiomas e considerado uma das 100 obras mais importantes de literatura jovem de todos os tempos. O universo bizarro criado por Riggs, que encanta pessoas de diferentes idades pelo mundo todo, tinha tudo para ser retratado de maneira inesquecível no cinema. Essa expectativa cresceu ainda mais depois do anúncio de que Tim Burton estaria na direção da obra. No entanto, nos deparamos com mais um filme decepcionante do diretor, que, desde “Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet” (2007), só acertou com “Frankenweenie” (2012), e tem sua genialidade, antes unanimidade, cada vez mais questionada.

Em uma distante ilha no País de Gales, a Senhora Peregrine (Eva Green) dirige um orfanato cujas crianças são, de alguma forma, peculiares. Há uma menina que aquece (e incendeia às vezes) tudo que toca com as mãos. Há uma garotinha que possui uma boca voraz atrás da cabeça, e outra cuja força é descomunal. Há o rapaz que projeta seus sonhos nas paredes, também há um que dá vida a seres inanimados. Há a garota que precisa usar sapatos de chumbo para não sair voando por aí, além de “dominar o ar”, e há os gêmeos cuja peculiaridade fica oculta durante quase todo o filme e, por isso, não vou estragar a surpresa. A própria Senhora Peregrine tem sua peculiaridade: controla o tempo e é capaz de se transformar em águia. E há Jacob Portman (Asa Butterfield), que vai parar no local para tentar compreender o que houve com seu avô, misteriosamente morto em seu quintal. Aparentemente “normal”, Jake é apresentado a um mundo novo, no qual fendas no tempo não permitem que as pessoas saiam de determinada época ou dia, cujos olhos de peculiares são cobiçados por aqueles que desejam a imortalidade, e cuja complexidade mostrou-se demasiada para a roteirista Jane Goldman e o diretor Tim Burton transmitirem para a tela do cinema.

É simplesmente fantástico o mundo criado por Ransom Briggs. Não posso avaliá-lo mais profundamente pelo fato de ainda não ter lido o livro, porém percebe-se que há uma bela construção de lógicas e regras próprias do universo dos peculiares e dos etéreos, que, infelizmente, não foram transpostas para o cinema de maneira satisfatória. Muito pouco sobre a pessimamente resolvida fenda no tempo é explicado com clareza suficiente para não ser necessário parar muitas vezes de prestar atenção ao filme para tentar entender o que acabou de acontecer. Ela é segura, mas como um etéreo entrou nela? Que história é essa de ela ter sido criada no momento perfeito? O que é o momento perfeito? Além disso, ao final do filme não fica clara a real função da fenda no tempo, uma vez que ela se mostra desnecessária para a maioria das coisas. Os etéreos, construídos em linda computação gráfica, não são explorados com clareza – eles são comedores de olhos ou “fornecedores”? Há uma correria desnecessária com a narrativa, o que impede que consigamos acompanhar bem  o que se passa na tela e, principalmente, torna forçadas algumas situações – o que é esse embuste de romance entre Jake e Emma (Ella Purnell)?

Há, ainda, algumas incoerências. Emma é a personagem que domina o ar, mas não consegue sustentar o vilão Barron (Samuel L. Jackson) por tempo suficiente em uma cena próxima do final do filme. Se ela domina o ar, não deveria ter poderes ilimitados sobre ele?  Também é provável que você questione como os poderes dos peculiares levantaram um navio naufragado; em um filme de fantasia é normal o uso desses poderes, mas o que acontece é inconcebível até para os X-Men juvenis de “O Lar das Crianças Peculiares”. 

Depois de um bom desenvolvimento inicial da narrativa, onde são apresentados os fatos que nos deixam interessados em continuar assistindo à jornada de Jake, o filme acaba se perdendo com ausência de explicações, como já foi mencionado acima. No entanto, é desrespeitado um dos princípios básicos para a existência de uma narrativa: o arco. Arco narrativo é aquilo pelo qual o personagem passa durante uma narrativa e que provoca uma mudança profunda em sua essência, em sua identidade. A inexistência de uma mudança profunda, no mínimo no personagem principal, torna desnecessária a existência de uma narrativa – dificilmente alguém terá interesse em acompanhar a história de um homem que acorda triste um dia, passa por diversas aventuras, e vai dormir triste, da mesma maneira. Isso acontece claramente em “O Lar das Crianças Peculiares”. Jake não encontra seu arco narrativo, não passa por uma mudança considerável em seu estado. E este é, na minha opinião, o maior pecado do longa: levar-nos do nada a lugar nenhum, colocando lindas cenas no meio.

Como em todo filme de Tim Burton, temos em “O Lar das Crianças Peculiares” um deleite visual. O ar sombrio do filme, as cores acinzentadas com a invasão de cores vivas em determinados momentos (principalmente o verde), além da direção de arte extremamente competente, fazem deste o filme de Burton visualmente mais impactante desde Sweeney Todd. Apesar dos diversos equívocos do diretor, há um ponto louvável em seu trabalho: por meio de sua câmera, somos facilmente imersos no mundo dos peculiares, e, por mais confuso que esse universo possa parecer, nos sentimos parte dele. Sobretudo, nos interessamos por ele. Os peculiares não são super-humanos, estão sujeitos a falhas – é impagável ver Jake tentando acertar flechas nos etéreos – e acabamos nos identificando bastante com eles.

As atuações dos atores são bastante destoantes e irregulares. Asa Butterfield alterna momentos em que parece estar totalmente perdido em cena com outros em que domina bem seu personagem. Sua atuação, no geral, é decepcionante, principalmente se comparada ao seu papel de maior relevância (Hugo Cabret, em “A Invenção de Hugo Cabret”). Eva Green é um monstro em cena, icônica, lembrando (e superando) bastante o Willy Wonka de Johnny Depp. Samuel L. Jackson tem um personagem aquém de sua capacidade, e possivelmente irá se arrepender no futuro de ter feito este trabalho. Isso sem falar em Judi Dench, que fez uma ponta constrangedora no filme, um papel irrelevante, que jamais deveria ser interpretado por uma atriz deste gabarito.

“O Lar das Crianças Peculiares” é um filme que diverte. A imersão neste novo mundo é feita de maneira habilidosa, há bom diálogo dos personagens com o público e a parte visual é linda. No entanto, o fã de Tim Burton, ou somente aquele que ainda acredita no trabalho do diretor, ficará frustrado quando começarem a aparecer os créditos finais. Resta saber quando será a recuperação de um cineasta tão talentoso, mas que dá sinais claros de que está perdido na carreira.

Por Danilo Martins

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